O que sabemos do 25 de Abril? Nas minhas navegações pela net, descobri uma entrevista com Óscar Cardoso, ex-inspector da PIDE durante o período quente em Portugal.
Óscar Aníbal Piçarra de Castro Cardoso, nascido a 10 de Junho de 1935, em Lisboa. Pertenceu à Mocidade Portuguesa, tendo ingressei na Legião Portuguesa quando frequentava o Instituto de Estudos Ultramarinos. Mais tarde pertenceu à GNR, até 1965, altura em que ingressou na PIDE. Em 1966, foi para Angola, onde mais tarde em Serpa Pinto, criou os "Flechas", uma força para militar, constituida por "bushmen" do Cuando-Cubango, treinados no campo de trabalho do Missombo, ex-campo de recuperação de terroristas, e que nada tinha a ver com a PIDE. O seu objectivo era a recolha de informação vital, infiltração em unidades terroristas e se fosse preciso em ataques localizados.
Quando regresseou a Lisboa, em fins de 1973, com o posto de inspector-adjunto, foi colocado na Direcção dos Serviços de Informação, coordenando a informação em Angola e Moçambique. Foi preso em 1975, aquando da "Revolução dos Cravos". Após ter sido libertado, viajou para a Rodésia onde trabalhou na formação dos "Sealous Scouts", uma versão rodesiana dos Flechas e no CIO (Central Inteligence Organisation). Em 1977, foi para a África do Sul, onde serviu nas forças armadas, força aérea, saindo com o posto de coronel. Trabalhou igualmente nos Serviços de Inteligência Militar do Exército sul-africano. Hoje em dia vive em Portugal.
Pois bem. Aqui fica este interessantíssimo registo histórico:
"E eis-nos que chegou o mês de Abril de 1974. Dia 25, o golpe de Estado que derrubou um regime com cerca de meio século de existência. Anteriormente: o golpe falhado das Caldas (16 de Março). Falhado, mas um importante prenúncio.
Debrucemo-nos, então, nas palavras de Óscar Cardoso.
Bruno Oliveira Santos: Que acções foram adoptadas para fazer abortar o golpe das Caldas?
Óscar Cardoso: Foi tudo muito fácil. Accionou-se o dispositivo militar e aquela movimentação parou toda.
B.O.S: A PIDE prendeu todos os spinolistas e o MFA passou a ser controlado pela facção esquerdista.
O.C: Isso não é bem assim. A PIDE nunca prendeu militares. Foram os próprios militares que prenderam os seus colegas golpistas. O único momento em que as coisas não se passaram dessa forma foi por causa de uma reunião que estava convocada para 16 de Março em casa do Almeida Bruno. Ora, como eu morava perto, no Monte Estoril, os militares pediram-me para deitar a mão ao Almeida Bruno e aguentar as coisas enquanto eles não chegassem. Dirigi-me então para lá. Ele morava num bloco com vários apartamentos. Já estavam todos lá dentro. Identifiquei-me então como inspector-adjunto da DGS a um morador do prédio e pedi-lhe para me deixar telefonar para a António Maria Cardoso. Já não sei com quem falei, mas lembro-me de ter dito ser necessário os militares virem depressa porque os outros já estavam todos reunidos e eu não podia fazer nada sozinho. E vim para a rua.
Entretanto, saiu de casa do Almeida Bruno o capitão Farinha Ferreira. Eu disse-lhe o que estava ali a fazer e enganei-o dizendo que aquilo estava tudo cercado, que havia militares em vários telhados vizinhos e que, por isso, era melhor para ele manter a calma. Contudo, ele estava excitadíssimo, mas não havia maneira de acalmá-lo. Disse-lhe: Eu não lhe quero fazer mal nenhum, mas olhe que os tipos que estão nos telhados ainda lhe dão um tiro!... Pedi-lhe então para se encostar a uma árvore, abraçando-a, e pus-lhe as algemas. Dali ele já não saía. Só se arrancasse a árvore pela raiz! E o tipo diz-me: Senhor inspector, eu sou um oficial do Exército e nunca me senti em toda a minha vida tão humilhado como neste momento. Disse-lhe que, desde que ele me desse a sua palavra de honra em como não saía dali, eu lhe tirava as algemas. Respondeu-me que sim e eu tirei-lhe as algemas. Entretanto chegaram os militares e levaram-nos a todos para o governo militar de Lisboa.
Também me mandaram ir prender o major Manuel Monge, que morava ali para Miraflores. Eu cheguei lá com mais dois agentes, bati à porta e a mulher disse-me que ele não estava. Respondi-lhe que tínhamos de verificar. Entrámos então na residência, abrimos todas as divisões e verificámos que uma delas estava fechada. A mulher do Monge disse que era o quarto da criada. Está bem, minha senhora, mas temos de verificar- respondi-lhe.
Mas também não estava lá ninguém. Parece que o Monge estava pendurado na varanda... Se nós estivessemos muito empenhados naquela operação, teríamos sido mais rigorosos e provavelmente o Monge não se escapava. A verdade é que estávamos ali todos um bocado contrariados. Olhe, quem conta este episódio é o Otelo no livro Alvorada em Abril. Escreveu lá, por outras palavras, que o inspector Óscar Cardoso revistou a casa, sempre com toda a correcção, mas a dada altura perdeu o verniz e insinuou que o major Monge estaria na cama com a criada... Ora, não foi nada disso, é tudo mentira.
B.O.S: Conheceu o Otelo?
O.C: O Otelo estudou comigo no Liceu Camões, mas depois perdi-lhe o rasto. Até ao 25 de Abril... A última vez que o vi foi em Luanda, em 1992. Eu tinha constituído com um sócio uma empresa que vendia aviões, e estava justamente em Angola a negociar a venda de aviões. Sabe que aquela malta do MPLA sempre me tratou com toda a correcção. Ora, no hotel onde eu estava hospedado vi o Otelo. E vi também o general Tomé Pinto. Não quer dizer que estivessemos juntos, mas vi-os lá. E o Otelo vinha todo lançado para me cumprimentar! Eu é que nem o cumprimentei a ele nem ao general Tomé Pinto, que foi meu comandante de Batalhão. Mais tarde, expliquei pessoalmente ao general Tomé Pinto que só não o cumprimentei para não o comprometer.
B.O.S: A PIDE ou o Governo já sabiam que ia ocorrer uma revolução a 25 de Abril?
O.C: É claro que sabiam. Principalmente depois do golpe das Caldas, a 16 de Março, controlávamos todos os movimentos dos militares subversivos. São eles próprios que hoje o dizem. Sabe o que é que nos enganou? Estávamos convencidos que o Spínola dominava a situação. É que o Spínola ainda nos inspirava alguma confiança, não era comunista. Sabíamos que ia dar-se o 25 de Abril, o que não sabíamos é que o 25 de Abril teria o desfecho que teve...
B.O.S: Acha que Marcello Caetano pode ter combinado com Spínola o 25 de Abril?
O.C: Tenho praticamente a certeza. Na manhã do dia 25 o director da PIDE, major Silva Pais, estabeleceu um contacto telefónico com Marcello Caetano, que já estava no Quartel do Carmo, e acordaram que uma brigada da polícia iria buscar o presidente do Conselho. O Sílvio Mortágua, o Abílio Pires e o Agostinho Tienza e eu. O Pires foi no seu próprio carro, atrás de nós. Seguimos em dois carros para que, em caso de necessidade, um deles pudesse executar uma qualquer manobra de diversão. Íamos esperar o presidente do Conselho à Rua do Carmo. Existe uma ligação- eu não quero ser romanesco e dizer que há uma passagem secreta- entre o Quartel do Carmo e a Rua do Carmo. E essa ligação ainda deve existir hoje, concerteza. O major Silva Pais combinou o nosso encontro com Marcello Caetano para esse local. Seguindo as suas instruções, parámos o carro mais ou menos a meio da Rua do Carmo, uns metros acima dos pilares do elevador de Santa Justa.
Como o Marcello nunca mais aparecia, eu disse aos outros para permanecerem ali, subi a Rua do Carmo, virei na Rua Garrett, subi a Calçada do Sacramento e apresentei-me no Quartel do Carmo. Fui recebido pelo comandante-geral da GNR, que me conduziu até ao Marcello. Disse-lhe que estávamos à sua espera na Rua do Carmo, de acordo com o que havia sido combinado com o major Silva Pais e o Marcello respondeu-me que não era preciso porque já tinha tudo tratado com o general Spínola!...
B.O.S: Que horas eram?
O.C: Não posso precisar, mas ainda era de manhã.
B.O.S: Isso derruba a versão oficial, segundo a qual o Spínola só é contactado a meio da tarde, por iniciativa do Pedro Feytor Pinto, depois de falar com Marcello Caetano.
O.C: Sim, sim. Eu lembro-me de que era de manhã porque depois disso ainda fui almoçar com o Tienza. Encontrámos uma tasquinha aberta na Travessa do Ferragial e comemos uns pastéis de bacalhau.
B.O.S: É verdade que Marcello Caetano foi informado na madrugada de 25 de Abril de que a PIDE podia fazer calar o Rádio Clube Português, posto de comando do MFA, mas nunca se mostrou muito interessado em qualquer acção de contra-ataque?
O.C: O Marcello Caetano não tinha nada a ver com isso. Nós podíamos de facto calar o Rádio Clube Português, mas para isso não era preciso o Marcello. Precisávamos era de um morteiro. Eu e o Alpoim Calvão tentámos encontrar um no Arsenal da Marinha, mas não estava lá ninguém. Se naquela altura tivéssemos arranjado um morteiro, talvez o 25 de Abril morresse ali. Não foi possível... Mas foi uma decisão do Alpoim Calvão, o Marcello não sabia de nada.
A dada altura, recebemos a informação que os militares de Cavalaria 7 vinham com carros de combate e autometralhadoras tomar a sede da PIDE. Era uma situação aborrecida porque ficávamos ali isolados, sem poder fazer nada. Então eu decidi bloquear os acessos à António Maria Cardoso, impedindo assim que os Payton de Cavalaria 7 chegassem lá. Pus um carro eléctrico na esquina da Rua Vítor Córdon com a Rua António Maria Cardoso, pus outro na entrada do Chiado Terrasse e pus ainda uma camioneta a tapar a Travessa dos Teatros.Quando chegaram os militares a dizer que vinham tomar as instalações, eu, o meu director e o Alpoim Calvão fomos falar com eles e rapidamente os demovemos das suas intenções. Lá se foram embora...
B.O.S: Por que motivo aparece o Alpoim Calvão na António Maria Cardoso?
O.C: O Alpoim Calvão ia ser o próximo director-geral da PIDE. Era uma coisa que já se sabia.
B.O.S: Mas a verdade é que Marcello Caetano nunca esboçou o mínimo gesto de contra-ataque. O próprio Salgueiro Maia podia ter sido apanhado entre dois fogos no Largo do Carmo.
O.C: Nunca recebemos na PIDE qualquer ordem para atacar o Salgueiro Maia e as tropas estacionadas no Carmo. O que se esperava, aliás, era que as tropas fiéis ao governo pusessem cobro áquela situação irregular. Não puseram... E repare que a GNR aquartelada no Carmo era, só por si, uma força, um esquadrão de Cavalaria que tinha certamente autometralhadoras e que, sem necessitar de mais ninguém, podia acabar com aquilo. O Marcello Caetano é que nunca permitiu que a PSP ou a GNR actuassem. Se tivesse dado ordens concretas à PSP e à GNR nesse sentido, aquilo acabava tudo em cinco minutos.
B.O.S: Lembra-se da ocupação da sede da PIDE pelos militares?
O.C: As Forças Armadas só entraram na sede da PIDE no dia 26, dirigidas pelo comandante Costa Correia. Até essa altura, tinham permanecido no exterior, juntamente com a população que andava por ali aos berros. Olhe, uma das frases gritadas na altura era esta: Vamos deitar fogo a isto tudo! Isso era um grande problema porque nós tínhamos um depósito de gasolina com muitos milhares de litros, cuja existência não era certamente conhecida pela população. Se o depósito se incendiasse, ia o Chiado todo pelos ares...
Foi por isso que o nosso director-geral mandou dar uns tiros para o ar. Acredito que um ou outro agente, mais nervoso ou mais atemorizado com a situação, tenha atirado para baixo. Mas, como estava a contar-lhe a propósito do Costa Correia, ele chegou lá no dia 26 e disse-nos: A população está um bocado agitada. É melhor vocês entregarem as armas e serem evacuados para Caxias até as coisas serenarem. Repare que até isto suceder, nós tivemos todas as possibilidades de nos safarmos. Saíamos muitas vezes para tomar café, para ir ali ou acolá... Bom, a verdade é que aceitámos ser evacuados para Caxias, com a garantia de que a detenção era temporária, até a situação acalmar. Mal chegámos a Caxias, vimos que afinal as promessas feitas não eram para cumprir. Mandaram-nos entregar os relógios e os atacadores dos sapatos. Enfim, deram-nos o tratamento de um prisioneiro normal. Vimos logo que não íamos ficar ali só enquanto as coisas não acalmassem...
B.O.S: O director de serviços Pereira de Carvalho e muitos dos seus subordinados que trabalhavam na Secção Central ficaram mais algum tempo com os militares na António Maria Cardoso, entretidos com os arquivos...
O.C: Ficaram lá mais um mês, pelo menos.
B.O.S: E dormiam lá?
O.C: Eu não sei como é que as coisas se passaram. Não sei até se o Pereira de Carvalho não iria dormir a casa, porventura sob vigilância. Os militares revolucionários queriam fundamentalmente que eles lhes indicassem onde estavam os ficheiros, como estavam organizados...
B.O.S: Mas a PIDE queimara já muitos ficheiros.
O.C: Sim, sim.
B.O.S: E nenhum dos funcionários da polícia aproveitou a confusão da altura para levar ficheiros para casa?
O.C: Não. Sabe porquê? Os que queriam ficheiros pessoais já os tinham levado para casa há muito tempo. Aliás, isso é uma coisa que não dignifica muito a minha antiga organização, mas a verdade é que havia na PIDE alguns monstros sagrados muito dados a colecções de ficheiros pessoais. (...)"
fonte: http://historiaeciencia.weblog.com.pt/arquivo/2003_10.html
Óscar Aníbal Piçarra de Castro Cardoso, nascido a 10 de Junho de 1935, em Lisboa. Pertenceu à Mocidade Portuguesa, tendo ingressei na Legião Portuguesa quando frequentava o Instituto de Estudos Ultramarinos. Mais tarde pertenceu à GNR, até 1965, altura em que ingressou na PIDE. Em 1966, foi para Angola, onde mais tarde em Serpa Pinto, criou os "Flechas", uma força para militar, constituida por "bushmen" do Cuando-Cubango, treinados no campo de trabalho do Missombo, ex-campo de recuperação de terroristas, e que nada tinha a ver com a PIDE. O seu objectivo era a recolha de informação vital, infiltração em unidades terroristas e se fosse preciso em ataques localizados.
Quando regresseou a Lisboa, em fins de 1973, com o posto de inspector-adjunto, foi colocado na Direcção dos Serviços de Informação, coordenando a informação em Angola e Moçambique. Foi preso em 1975, aquando da "Revolução dos Cravos". Após ter sido libertado, viajou para a Rodésia onde trabalhou na formação dos "Sealous Scouts", uma versão rodesiana dos Flechas e no CIO (Central Inteligence Organisation). Em 1977, foi para a África do Sul, onde serviu nas forças armadas, força aérea, saindo com o posto de coronel. Trabalhou igualmente nos Serviços de Inteligência Militar do Exército sul-africano. Hoje em dia vive em Portugal.
Pois bem. Aqui fica este interessantíssimo registo histórico:
"E eis-nos que chegou o mês de Abril de 1974. Dia 25, o golpe de Estado que derrubou um regime com cerca de meio século de existência. Anteriormente: o golpe falhado das Caldas (16 de Março). Falhado, mas um importante prenúncio.
Debrucemo-nos, então, nas palavras de Óscar Cardoso.
Bruno Oliveira Santos: Que acções foram adoptadas para fazer abortar o golpe das Caldas?
Óscar Cardoso: Foi tudo muito fácil. Accionou-se o dispositivo militar e aquela movimentação parou toda.
B.O.S: A PIDE prendeu todos os spinolistas e o MFA passou a ser controlado pela facção esquerdista.
O.C: Isso não é bem assim. A PIDE nunca prendeu militares. Foram os próprios militares que prenderam os seus colegas golpistas. O único momento em que as coisas não se passaram dessa forma foi por causa de uma reunião que estava convocada para 16 de Março em casa do Almeida Bruno. Ora, como eu morava perto, no Monte Estoril, os militares pediram-me para deitar a mão ao Almeida Bruno e aguentar as coisas enquanto eles não chegassem. Dirigi-me então para lá. Ele morava num bloco com vários apartamentos. Já estavam todos lá dentro. Identifiquei-me então como inspector-adjunto da DGS a um morador do prédio e pedi-lhe para me deixar telefonar para a António Maria Cardoso. Já não sei com quem falei, mas lembro-me de ter dito ser necessário os militares virem depressa porque os outros já estavam todos reunidos e eu não podia fazer nada sozinho. E vim para a rua.
Entretanto, saiu de casa do Almeida Bruno o capitão Farinha Ferreira. Eu disse-lhe o que estava ali a fazer e enganei-o dizendo que aquilo estava tudo cercado, que havia militares em vários telhados vizinhos e que, por isso, era melhor para ele manter a calma. Contudo, ele estava excitadíssimo, mas não havia maneira de acalmá-lo. Disse-lhe: Eu não lhe quero fazer mal nenhum, mas olhe que os tipos que estão nos telhados ainda lhe dão um tiro!... Pedi-lhe então para se encostar a uma árvore, abraçando-a, e pus-lhe as algemas. Dali ele já não saía. Só se arrancasse a árvore pela raiz! E o tipo diz-me: Senhor inspector, eu sou um oficial do Exército e nunca me senti em toda a minha vida tão humilhado como neste momento. Disse-lhe que, desde que ele me desse a sua palavra de honra em como não saía dali, eu lhe tirava as algemas. Respondeu-me que sim e eu tirei-lhe as algemas. Entretanto chegaram os militares e levaram-nos a todos para o governo militar de Lisboa.
Também me mandaram ir prender o major Manuel Monge, que morava ali para Miraflores. Eu cheguei lá com mais dois agentes, bati à porta e a mulher disse-me que ele não estava. Respondi-lhe que tínhamos de verificar. Entrámos então na residência, abrimos todas as divisões e verificámos que uma delas estava fechada. A mulher do Monge disse que era o quarto da criada. Está bem, minha senhora, mas temos de verificar- respondi-lhe.
Mas também não estava lá ninguém. Parece que o Monge estava pendurado na varanda... Se nós estivessemos muito empenhados naquela operação, teríamos sido mais rigorosos e provavelmente o Monge não se escapava. A verdade é que estávamos ali todos um bocado contrariados. Olhe, quem conta este episódio é o Otelo no livro Alvorada em Abril. Escreveu lá, por outras palavras, que o inspector Óscar Cardoso revistou a casa, sempre com toda a correcção, mas a dada altura perdeu o verniz e insinuou que o major Monge estaria na cama com a criada... Ora, não foi nada disso, é tudo mentira.
B.O.S: Conheceu o Otelo?
O.C: O Otelo estudou comigo no Liceu Camões, mas depois perdi-lhe o rasto. Até ao 25 de Abril... A última vez que o vi foi em Luanda, em 1992. Eu tinha constituído com um sócio uma empresa que vendia aviões, e estava justamente em Angola a negociar a venda de aviões. Sabe que aquela malta do MPLA sempre me tratou com toda a correcção. Ora, no hotel onde eu estava hospedado vi o Otelo. E vi também o general Tomé Pinto. Não quer dizer que estivessemos juntos, mas vi-os lá. E o Otelo vinha todo lançado para me cumprimentar! Eu é que nem o cumprimentei a ele nem ao general Tomé Pinto, que foi meu comandante de Batalhão. Mais tarde, expliquei pessoalmente ao general Tomé Pinto que só não o cumprimentei para não o comprometer.
B.O.S: A PIDE ou o Governo já sabiam que ia ocorrer uma revolução a 25 de Abril?
O.C: É claro que sabiam. Principalmente depois do golpe das Caldas, a 16 de Março, controlávamos todos os movimentos dos militares subversivos. São eles próprios que hoje o dizem. Sabe o que é que nos enganou? Estávamos convencidos que o Spínola dominava a situação. É que o Spínola ainda nos inspirava alguma confiança, não era comunista. Sabíamos que ia dar-se o 25 de Abril, o que não sabíamos é que o 25 de Abril teria o desfecho que teve...
B.O.S: Acha que Marcello Caetano pode ter combinado com Spínola o 25 de Abril?
O.C: Tenho praticamente a certeza. Na manhã do dia 25 o director da PIDE, major Silva Pais, estabeleceu um contacto telefónico com Marcello Caetano, que já estava no Quartel do Carmo, e acordaram que uma brigada da polícia iria buscar o presidente do Conselho. O Sílvio Mortágua, o Abílio Pires e o Agostinho Tienza e eu. O Pires foi no seu próprio carro, atrás de nós. Seguimos em dois carros para que, em caso de necessidade, um deles pudesse executar uma qualquer manobra de diversão. Íamos esperar o presidente do Conselho à Rua do Carmo. Existe uma ligação- eu não quero ser romanesco e dizer que há uma passagem secreta- entre o Quartel do Carmo e a Rua do Carmo. E essa ligação ainda deve existir hoje, concerteza. O major Silva Pais combinou o nosso encontro com Marcello Caetano para esse local. Seguindo as suas instruções, parámos o carro mais ou menos a meio da Rua do Carmo, uns metros acima dos pilares do elevador de Santa Justa.
Como o Marcello nunca mais aparecia, eu disse aos outros para permanecerem ali, subi a Rua do Carmo, virei na Rua Garrett, subi a Calçada do Sacramento e apresentei-me no Quartel do Carmo. Fui recebido pelo comandante-geral da GNR, que me conduziu até ao Marcello. Disse-lhe que estávamos à sua espera na Rua do Carmo, de acordo com o que havia sido combinado com o major Silva Pais e o Marcello respondeu-me que não era preciso porque já tinha tudo tratado com o general Spínola!...
B.O.S: Que horas eram?
O.C: Não posso precisar, mas ainda era de manhã.
B.O.S: Isso derruba a versão oficial, segundo a qual o Spínola só é contactado a meio da tarde, por iniciativa do Pedro Feytor Pinto, depois de falar com Marcello Caetano.
O.C: Sim, sim. Eu lembro-me de que era de manhã porque depois disso ainda fui almoçar com o Tienza. Encontrámos uma tasquinha aberta na Travessa do Ferragial e comemos uns pastéis de bacalhau.
B.O.S: É verdade que Marcello Caetano foi informado na madrugada de 25 de Abril de que a PIDE podia fazer calar o Rádio Clube Português, posto de comando do MFA, mas nunca se mostrou muito interessado em qualquer acção de contra-ataque?
O.C: O Marcello Caetano não tinha nada a ver com isso. Nós podíamos de facto calar o Rádio Clube Português, mas para isso não era preciso o Marcello. Precisávamos era de um morteiro. Eu e o Alpoim Calvão tentámos encontrar um no Arsenal da Marinha, mas não estava lá ninguém. Se naquela altura tivéssemos arranjado um morteiro, talvez o 25 de Abril morresse ali. Não foi possível... Mas foi uma decisão do Alpoim Calvão, o Marcello não sabia de nada.
A dada altura, recebemos a informação que os militares de Cavalaria 7 vinham com carros de combate e autometralhadoras tomar a sede da PIDE. Era uma situação aborrecida porque ficávamos ali isolados, sem poder fazer nada. Então eu decidi bloquear os acessos à António Maria Cardoso, impedindo assim que os Payton de Cavalaria 7 chegassem lá. Pus um carro eléctrico na esquina da Rua Vítor Córdon com a Rua António Maria Cardoso, pus outro na entrada do Chiado Terrasse e pus ainda uma camioneta a tapar a Travessa dos Teatros.Quando chegaram os militares a dizer que vinham tomar as instalações, eu, o meu director e o Alpoim Calvão fomos falar com eles e rapidamente os demovemos das suas intenções. Lá se foram embora...
B.O.S: Por que motivo aparece o Alpoim Calvão na António Maria Cardoso?
O.C: O Alpoim Calvão ia ser o próximo director-geral da PIDE. Era uma coisa que já se sabia.
B.O.S: Mas a verdade é que Marcello Caetano nunca esboçou o mínimo gesto de contra-ataque. O próprio Salgueiro Maia podia ter sido apanhado entre dois fogos no Largo do Carmo.
O.C: Nunca recebemos na PIDE qualquer ordem para atacar o Salgueiro Maia e as tropas estacionadas no Carmo. O que se esperava, aliás, era que as tropas fiéis ao governo pusessem cobro áquela situação irregular. Não puseram... E repare que a GNR aquartelada no Carmo era, só por si, uma força, um esquadrão de Cavalaria que tinha certamente autometralhadoras e que, sem necessitar de mais ninguém, podia acabar com aquilo. O Marcello Caetano é que nunca permitiu que a PSP ou a GNR actuassem. Se tivesse dado ordens concretas à PSP e à GNR nesse sentido, aquilo acabava tudo em cinco minutos.
B.O.S: Lembra-se da ocupação da sede da PIDE pelos militares?
O.C: As Forças Armadas só entraram na sede da PIDE no dia 26, dirigidas pelo comandante Costa Correia. Até essa altura, tinham permanecido no exterior, juntamente com a população que andava por ali aos berros. Olhe, uma das frases gritadas na altura era esta: Vamos deitar fogo a isto tudo! Isso era um grande problema porque nós tínhamos um depósito de gasolina com muitos milhares de litros, cuja existência não era certamente conhecida pela população. Se o depósito se incendiasse, ia o Chiado todo pelos ares...
Foi por isso que o nosso director-geral mandou dar uns tiros para o ar. Acredito que um ou outro agente, mais nervoso ou mais atemorizado com a situação, tenha atirado para baixo. Mas, como estava a contar-lhe a propósito do Costa Correia, ele chegou lá no dia 26 e disse-nos: A população está um bocado agitada. É melhor vocês entregarem as armas e serem evacuados para Caxias até as coisas serenarem. Repare que até isto suceder, nós tivemos todas as possibilidades de nos safarmos. Saíamos muitas vezes para tomar café, para ir ali ou acolá... Bom, a verdade é que aceitámos ser evacuados para Caxias, com a garantia de que a detenção era temporária, até a situação acalmar. Mal chegámos a Caxias, vimos que afinal as promessas feitas não eram para cumprir. Mandaram-nos entregar os relógios e os atacadores dos sapatos. Enfim, deram-nos o tratamento de um prisioneiro normal. Vimos logo que não íamos ficar ali só enquanto as coisas não acalmassem...
B.O.S: O director de serviços Pereira de Carvalho e muitos dos seus subordinados que trabalhavam na Secção Central ficaram mais algum tempo com os militares na António Maria Cardoso, entretidos com os arquivos...
O.C: Ficaram lá mais um mês, pelo menos.
B.O.S: E dormiam lá?
O.C: Eu não sei como é que as coisas se passaram. Não sei até se o Pereira de Carvalho não iria dormir a casa, porventura sob vigilância. Os militares revolucionários queriam fundamentalmente que eles lhes indicassem onde estavam os ficheiros, como estavam organizados...
B.O.S: Mas a PIDE queimara já muitos ficheiros.
O.C: Sim, sim.
B.O.S: E nenhum dos funcionários da polícia aproveitou a confusão da altura para levar ficheiros para casa?
O.C: Não. Sabe porquê? Os que queriam ficheiros pessoais já os tinham levado para casa há muito tempo. Aliás, isso é uma coisa que não dignifica muito a minha antiga organização, mas a verdade é que havia na PIDE alguns monstros sagrados muito dados a colecções de ficheiros pessoais. (...)"
fonte: http://historiaeciencia.weblog.com.pt/arquivo/2003_10.html
1 comentário:
Este OOOOOOOOOoscar Cardoso é um verdadeiro escuteiro. Só fez boas acções .Tirando as bofetadas e os caloszinhos todo ele era um menino de coro. Alguém acredita no Pai Natal. Vá contar patrnhas a outros. Vem vi o que faziam aos desgraçados que vos caiam nas garras. Quando morrer não tem quem lhe valha
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