quinta-feira, janeiro 30, 2014

"Caso" Héldon e a Lei Webster



Hoje foi notícia nos jornais “A Bola” e “O Jogo” que o Héldon estava a forçar a saída doMarítimo via Lei Webster. Mas afinal o que é isto da “Lei Webster”? Para percebermos melhor esta história, temos de recuar um pouco no tempo.

Como é do conhecimento geral, a Lei Bosman veio agitar brutalmente o mercado de transferências, na defesa da livre circulação dos trabalhadores dentro da União Europeia, tendo por base as disposições do Tratado de Roma e Maastricht. Nesse sentido, o futebol não era excepção. Através do Acordão Bosman proferido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, o mercado abriu-se de uma forma nunca vista aos jogadores, permitindo aos futebolistas que não se vissem impedidos de jogar noutro país da União Europeia por normas internas da UEFA ou das respectivas Federações nacionais. Por exemplo, ao abrigo da Lei Bosman, a FIFA permite que um jogador possa assinar com quem quiser quando estiver faltando no máximo 6 meses para o fim de seu contrato.

Consequentemente, o actual artº.17º. do Regulamento de Transferências da FIFA, foi introduzido em Setembro de 2001, na sequencia de um pedido da Comissão Europeia, que vinha manifestando preocupação por causa dos jogadores de futebol não terem a mesma liberdade de movimentação que os outros trabalhadores da União Europeia.

Porém depois de Bosman, surgiu a Lei Webster, com uma margem de potencial igualmente revolucionária. Na prática, o que vem dizer é que, lançando mão do artigo em causa (o 17º), um jogador pode cessar unilateralmente o contrato depois de determinado período, no qual o contrato estaria "protegido". Para jogadores com menos de 28 anos, esse período é de 3 anos e para jogadores com mais de 28, o período fixado é de 2 anos.

Andy Webster, em Maio de 2006, usou esse dispositivo, para se libertar do vínculo contratual no terceiro dos seus quatro anos de contrato, depois do clube pelo qual se encontrava contratualmente vinculado, o Hearts, excluir Webster da lista de convocados para um jogo por, alegadamente se recusar a renovar o respectivo contrato. Com a obrigatoriedade de avisar o seu clube com apenas 15 dias de antecedência, Webster, poderia assinar pelo clube desejado, o conhecido Wigan, sendo que a FIFA acabaria por remeter para momento ulterior a fixação do montante indemnizatório.

Depois da FIFA concluir que a cessação contratual padecera de "justa causa", e suspender o jogador com condenação, a favor do Hearts, no pagamento de 625 mil libras a título de indemnização, o caso terminaria no Tribunal Arbitral do Desporto, (TAS, vindo este a conceder razão a Webster, reconhecendo que um jogador pode sair do seu clube para assinar com um clube de outro país sem autorização, desde que ele tenha cumprido pelo menos três (ou duas) temporadas do seu contrato e que notifique o clube com pelo menos 15 dias de antecedência.

Estava, portanto, por determinar o valor a que o clube empregador teria direito como indemnização pela saída, o que foi feito pelo TAS. A decisão foi clara e serve tanto para o clube como para o futebolista:

  • A indemnização é igual ao valor dos vencimentos a pagar ao atleta até final do contrato (a FIFA tinha “sugerido” que o valor fosse, pelo menos, uma vez e meia os salários que o jogador teria a receber até ao final do contrato);
  • Não há qualquer sanção desportiva;
  • o jogador pode assinar por um clube estrangeiro (o regulamento de transferências da FIFA é apenas aplicável a negócios internacionais);
  • O período protegido - de três anos para futebolistas com menos de 28 anos, de dois para os mais velhos - assenta apenas sobre o período em que se é profissional, ou seja, desde o momento em que o atleta assine um contrato como profissional. Para se invocar o artigo 17 do Regulamento não contam os anos de formação (atenção que cada contrato assinado inicia um novo período protegido)
  • E para que a rescisão de um jogador seja validada pelo artigo o pedido terá de ser feito até 15 dias depois do último jogo oficial do clube que o futebolista representa.

No entanto, o acórdão do TAS não faz referência a cláusulas de rescisão, deixando apenas no ar a sua validade dentro e fora de cada período protegido.

Na prática, um jogador de 25 anos que tenha assinado em 2011 um contrato de 4 anos, cumpridos que estejam três do quatro acordados, pode pedir a rescisão unilateral sem justa causa do seu contrato de trabalho, desde que seja feito nos quinze dias após o último jogo oficial do clube que representa, e apenas para uma transferência internacional, ou seja, para um clube de outro país que aquele que joga. Não tem qualquer sanção desportiva e fica apenas obrigado a compensar o clube no valor dos vencimentos que iria receber até final do contrato.

Em 2007 a Câmara de Resolução de Litígios da FIFA recebeu um assunto que veio a ser batizado de "Caso Matuzalém". Resumidamente, o médio Francelino Matuzalém, de 27 anos, à data atleta do Shakhtar Donetsk, da Ucrânia, onde jogava há três temporadas (2004/07), e cujo contrato terminava em Junho de 2008, foi abordado pelo Zaragoza de Espanha para a sua contratação. O clube espanhol ofereceu 12M€, mas o Shakhtar rejeitou. Em Julho de 2007, Matuzalém regressou ao Brasil, invocando "problemas familiares". Poucos dias depois, no entanto, o médio rescindia unilateralmente o contrato com o clube ucraniano, alegar o artigo 17.º do Regulamento de Transferências da FIFA e a Lei Webster, e era apresentado como jogador do Saragoça – e que entretanto se veio a transferir para a Lazio de Roma por 15 M €.

Os ucranianos não satisfeitos com a Sentença da Câmara de Resolução de Litígios da FIFA, que condenara Saragoça e Matuzalém no pagamento de uma indemnização de 6.8M€, contando que, a partida, clube e jogador aceitavam o pagamento da quantia de 3.2M€, interpôs recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto (TAS), instância última de recurso das deliberações das instâncias desportivas. Os ucranianos pugnavam por uma indemnização de 25M€, considerada com base numa cláusula contratual, interpretada pelo clube como uma cláusula de rescisão contratual. Neste processo importa considerar, objectivamente os seguintes aspectos: a especificidade da rescisão contratual por parte de um contratante (jogador) sem invocação de justa causa; a natureza “indemnizável” do dano desportivo; a contraposição entre clausula de transferência e clausula de rescisão/indemnização; a solidariedade do pagamento indemnizatório.

O TAS veio a condenar o médio brasileiro Francelino Matuzalem e o Zaragoza, com carácter solidário (o que significa, necessariamente que não estando efectuado o pagamento no prazo estabelecido, o Zaragoza poderia incorrer nas sanções que a FIFA determina para os casos de incumprimento podendo ir inclusivamente para a dedução de pontos ou descida de divisão),  a pagar uma indemnização de 11,86 M € (mais juros de mora), por este ter rescindido unilateralmente, sem justa causa, o contrato que o vinculava ao Shakhtar Donetsk, em 2007. A decisão do TAS surpreendeu o mundo do futebol, dado que foi precisamente este tribunal de Lausana que, no caso Andy Webster — também perante uma situação de um jogador que alegou o artigo 17.º - decretara que o escocês teria apenas que pagar o valor residual (leia-se salários relativos ao tempo que faltava cumprir no contrato denunciado).

Então, perante tudo isto, o que se retira daqui? Sumariamente que:

  • O recurso ao artigo 17º. do Regulamento sobre o Estatuto e Transferência de Jogadores, não constitui um cheque em branco para que, no prazo de duas semanas após o último jogo oficial da época desportiva em causa se possa lançar mão deste expediente, nem nunca foi intenção criar um «livre trânsito» para a rescisão unilateral;
  • Inequívoca valoração do chamado dano desportivo, ou seja, a perda do jogador em função do seu estatuto, influencia, e contexto temporal da rescisão (neste caso concreto, verificada muito pouco antes de um jogo de qualificação para a Champions), constitui uma das parcelas indemnizatórias que os clubes visados não deixarão de reclamar no futuro;
  • O TAS vem referenciar com particular pertinência que uma cláusula de transferência não se confunde com uma cláusula de indemnização por rescisão contratual. Ambas têm natureza indemnizatória, mas a primeira constitui uma obrigação para o clube desde que receba uma proposta valor da para obter a transferência do jogador, enquanto que a segunda é um benefício do clube, decorrente da extinção do vinculo laboral, contratual, unilateralmente e sem invocação e fundamentação de qualquer justa causa;
  • A Lei Webster não pode fazer regra (atendendo à enorme diferença nos valores das indemnizações nos dois casos), embora, tal como sucedera no caso Webster, esta decisão também rejeitou as cláusulas de rescisão como forma de os clubes contornarem o artigo 17.º (O Shakhtar pedia uma indemnização de 25 milhões, porque esse era o valor da cláusula que tinha acordado com o atleta, mas os juízes não contemplaram esse montante, pelo que os tais 11,8 milhões decorrem de outros factores);
  • E, sobretudo, que em matérias de rescisões e transferências, cada caso é um caso.

Retomando o assunto Héldon, teoricamente é possível que o jogador invoca o art. 17º do Regulamento de Transferências da FIFA e a Lei Webster, para rescindir o seu contrato no final desta temporada. O jogador tem 25 anos e o seu contrato termina em 2015. Confesso que não sei quantos anos já cumpriu o Héldon neste seu contrato, mas é certo que o mesmo pode – em teoria – rescindir unilateralmente e sem justa causa o contrato que o liga ao Marítimo, invocando tal artigo, desde que se transfira para um clube de outro país.

Porém, na prática, e caso o Marítimo impugne esta decisão do jogador, e conforme tudo o exposto em cima, não é linear que o jogador apenas fique obrigado a compensar o clube apenas no seu valor salarial, como veio ser definido pelo caso Matusalém. De facto, é algo que poderá sair bem caro ao jogador e, solidariamente, ao clube que o venha a contratar na sequência de uma eventual rescisão do vínculo que o liga ao Marítimo.

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