domingo, março 25, 2012

O burro que caiu do céu


"Excelentíssimo Senhor,
Para os devidos efeitos participo a V. Ex.ª que acabou de cair nesta povoação um burro vindo do céu. O feliz caiu já sem fala e não deu mais sinal de si. Providenciei para que ninguém lhe toque até que V. Ex.ª me mande instruções sobre o destino a dar-lhe, visto tratar-se de um caso que não está previsto no Código Administrativo. Peço a V. Ex.ª a máxima urgência na resposta, pois podem vir a cair mais burros do céu e haver alguma inundação que interrompa o trânsito público.
O regedor em serviço,
(fulano de tal)."

Ao receber este curioso ofício, o administrador do concelho de Oliveira de Azeméis retorceu uma das pontas do bigode e fitou com olhar vago o retrato do rei D. Luís pendurado na parede do seu gabinete. Mandou depois chamar o contínuo da câmara e perguntou-lhe se constava que o regedor da freguesia de onde vinha a carta tivesse enlouquecido. O empregado respondeu que nada sabia a esse respeito, mas a decisão do administrador estava tomada: demitiu o regedor; porque das três, uma: ou tinha enlouquecido, ou era incompetente ou, pior que tudo, estava a troçar dele...
Afinal, o regedor em questão limitara-se a reportar - ingenuamente, é certo - um acontecimento verídico.

Nesse ano de 1883 aparecera no Porto um balonista francês chamado Émile Castelet, que não se cansava de mostrar as suas proezas aeronáuticas. Fazia ascensões a partir dos jardins do Palácio de Cristal, umas vezes sozinho, outra elevando consigo nos ares uma jovem socialite desse tempo, outra ainda metendo na barquinha de verga suspensa do balão uma atriz de talento medíocre, talvez por isso mesmo sedenta de notoriedade, chamada Iva Rute. Um dia, para prender ainda mais a atenção do público, lembrou-se de dar boleia a um burro. E num domingo de inverno, entre gargalhadas da assistência, o francês e o asno elevaram-se nos ares sob o céu cinzento, o homem na barquinha e o animal suspenso de umas cordas. De súbito, porém o vento começou a soprar com muita força, tocando a chuva, e não tardou que o balão, com o bípede e o quadrúpede, se sumisse para os lados de Gaia.

Os espectadores ficaram preocupados. Não era costume Castelet desaparecer da sua vista. E como a tempestade aumentasse de força, recolheram a penates adiando a satisfação da sua curiosidade para o momento da leitura dos jornais do dia seguinte.

Vieram a saber por essa via que o balão caíra num pinhal perto de Oliveira de Azeméis e que o azougado piloto ficar ferido no acidente. Os correspondentes locais descreviam o espanto da população da vila e a forma como tinha sido socorrido o francês. Mas do burro não falavam. Só quando Castelet regressou ao Porto, já refeito, é que souberam, pela boca do próprio, o que se passara com o animal.

Acossado pelo temporal, com o balão a perder altura, Castelet começou a deitar fora os sacos de areia que serviam de lastro. Mas, como essa perda de peso não bastasse e o aeróstato continuasse a baixar perigosamente, não teve por onde escolher: cortou as cordas que seguravam o burro, e adeus companheiro involuntário de aventura!

O asno veio a cair no centro de uma pequena aldeia, onde a estranha ocorrência provocou o maior dos alvoroços. Com efeito, as nuvens carregadas escondiam o balão da vista dos aldeões, e a queda de um burro vindo do céu foi considerada prodigiosa. O regedor escreveu tal ofício ao administrador do concelho e foi vítima do seu zelo. O aeronauta quadrúpede, presume-se que tenha sido enterrado na freguesia como um vulgar jumento. Ninguém o homenageou como aquilo que realmente foi: um mártir na conquista dos ares.

"in" 365 Dias com histórias da História de Portugal, de Luís Almeida Martins

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