Durante longos 17 anos, Maria Teresinha viveu como general Tito Aníbal. O porte altivo e emproado, o charme e a classe da farda com estrelas reluzentes enganaram toda a gente. Até a companheira Joaquina, com quem viveu esses tempos de glória, nem por um momento desconfiou da trapaça. O disfarce nunca teria sido descoberto se não fossem as sucessivas burlas que lhe permitiram uma vida confortável.
Ainda Maria Teresinha não tinha nascido e já o destino lhe pregava uma partida. A desgraça da pneumónica chegou à remediada família Paixão Gomes, nos arredores do Funchal, e em 1932 levou Tito Aníbal – o pequeno Tito, de apenas 20 meses. Os pais, um funcionário público e uma dona de casa nunca recuperaram do desgosto. Nem o nascimento de uma menina, um ano depois, lhes trouxe alegria. Maria Teresinha cresceu numa casa triste: dirá mais tarde que nunca viu um sorriso nos pais – apenas lágrimas de saudade.
A menina teve uma educação esmerada só ao alcance dos apelidos ilustres do Funchal desse tempo. Fez a escola primária, frequentou aulas de etiqueta e boas maneiras e concluiu o 7.ª ano do liceu com excelente classificação.
Ainda na Madeira, apaixonou-se perdidamente – não se sabe se por um homem se por uma mulher, segredo que nunca revelou. Uns dizem que foi por uma mulher, outros garantem que foi por um cavalheiro de posição com idade para ser pai dela. O caso, em qualquer das versões, seria à medida de um valente escândalo. Maria Teresinha não suportou o desgosto de um amor impossível. Largou tudo e fugiu para Lisboa sem dizer nada a ninguém. Foi dada oficialmente como desaparecida.
As autoridades e os pais acreditavam que ela se suicidara do cimo de uma falésia e que o corpo fora tragado pelo mar. Mal sabiam que a rapariga estava viva em Lisboa e de boa saúde. Maria Teresinha já não respondia por esse nome. Cortou o cabelo curto, trocou os óculos graciosos por pesadas armações rectangulares, passou a usar fato e gravata – e assumiu a identidade do irmão que nunca conheceu: Tito Aníbal da Paixão Gomes. Vivia de expedientes.
No Carnaval de 1974, deu os primeiros passos na carreira militar. Já não tinha idade para oficial subalterno e a modéstia não lhe abria grandes portas. Atirou-se para o topo da hierarquia. Num alfaiate da Baixa encomendou uma farda de general do Exército, numa loja do Rossio comprou as estrelas e demais insígnias, noutra de Alvalade arranjou o boné com os dourados da ordem. A farda caía-lhe a matar. Nunca mais a largou.
Nos últimos meses de 1974, ainda a poeira da Revolução de 25 de Abril não assentara, conheceu Joaquina Conceição da Costa, solteira – que ficou encantada com a garbosa figura de general. Ela andava pelos 50, ‘ele’ pelos 42. Juntaram os trapinhos num apartamento na Damaia, concelho da Amadora, nos arredores de Lisboa.
Uma vizinha, Piedade Ferreira, cometeu o erro de confessar que tinha uns dinheiros de parte. Os olhos do falso general Tito brilharam de gula. Não lhe custou convencer a crédula vizinha a não correr riscos na banca nacionalizada: o melhor seria aplicar as poupanças nos Estados Unidos, numa sólida instituição bancária que conhecia muito bem dos tempos em que fora embaixador. Piedade confiou-lhe cerca de 2500 contos, uma fortuna para a época. Tito investiu o dinheiro na compra da vivenda ‘Saudade’, em Alenquer, para onde foi viver com a fiel Joaquina da Costa.
Maria Teresinha, a mulher mascarada de general, fez-se passar por embaixador, director da CIA em Portugal, tesoureiro da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, advogado de causas exclusivamente militares e espião. Até iludiu o motorista que todos os dias o conduzia desde Alenquer e o deixava nas imediações do Quartel do Carmo, comando-geral da GNR, em Lisboa: durante dois anos não lhe pagou um tostão de ordenado.
As sucessivas burlas deram origem a queixas na Polícia Judiciária. Os investigadores suaram à procura de um tal general Tito Aníbal da Paixão Gomes. Só ao fim de um ano verificaram que uma mulher com os mesmos apelidos estava desaparecida da Madeira desde os anos 60. Foi detida em Novembro de 1992 – e a farda confiscada.
Para provar que o general Tito Aníbal era, afinal, uma mulher, a Polícia Judiciária levou a suspeita ao Instituto de Medicina Legal – onde os médicos esclareceram todas as dúvidas. Teresinha foi fotografada no Instituto de Medicina Legal como veio ao Mundo – e a foto passou a fazer parte do processo. Mas a imagem era chocante, tão grotesca que o juiz que presidiu ao colectivo de julgamento, Silveira Antunes, a arrancou dos autos e rasgou-a.
Maria Teresinha foi julgada em 1993 no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, e condenada na pena suspensa de três anos de prisão. O duche matinal do ‘general’ foi um dos temas mais debatidos no julgamento. ‘Ele’ levantava-se religiosamente às seis da manhã, ainda a companheira Joaquina dormia. Tinha tempo para estar à-vontade sem correr o risco de ser surpreendido na intimidade. O creme de barbear e as lâminas davam um toque masculino ao cenário. Quando Joaquina se levantava, já o ‘general’ estava arranjado. Joaquina disse em Tribunal que durante todo o tempo julgou partilhar casa com um homem. O mistério baralhou os juízes – que só encontraram uma explicação: a vida era em comum, mas em quartos separados.
Maria Teresinha Gomes faleceu aos 74 anos.
fonte: Correio da Manhã (07.10.06)
Ainda Maria Teresinha não tinha nascido e já o destino lhe pregava uma partida. A desgraça da pneumónica chegou à remediada família Paixão Gomes, nos arredores do Funchal, e em 1932 levou Tito Aníbal – o pequeno Tito, de apenas 20 meses. Os pais, um funcionário público e uma dona de casa nunca recuperaram do desgosto. Nem o nascimento de uma menina, um ano depois, lhes trouxe alegria. Maria Teresinha cresceu numa casa triste: dirá mais tarde que nunca viu um sorriso nos pais – apenas lágrimas de saudade.
A menina teve uma educação esmerada só ao alcance dos apelidos ilustres do Funchal desse tempo. Fez a escola primária, frequentou aulas de etiqueta e boas maneiras e concluiu o 7.ª ano do liceu com excelente classificação.
Ainda na Madeira, apaixonou-se perdidamente – não se sabe se por um homem se por uma mulher, segredo que nunca revelou. Uns dizem que foi por uma mulher, outros garantem que foi por um cavalheiro de posição com idade para ser pai dela. O caso, em qualquer das versões, seria à medida de um valente escândalo. Maria Teresinha não suportou o desgosto de um amor impossível. Largou tudo e fugiu para Lisboa sem dizer nada a ninguém. Foi dada oficialmente como desaparecida.
As autoridades e os pais acreditavam que ela se suicidara do cimo de uma falésia e que o corpo fora tragado pelo mar. Mal sabiam que a rapariga estava viva em Lisboa e de boa saúde. Maria Teresinha já não respondia por esse nome. Cortou o cabelo curto, trocou os óculos graciosos por pesadas armações rectangulares, passou a usar fato e gravata – e assumiu a identidade do irmão que nunca conheceu: Tito Aníbal da Paixão Gomes. Vivia de expedientes.
No Carnaval de 1974, deu os primeiros passos na carreira militar. Já não tinha idade para oficial subalterno e a modéstia não lhe abria grandes portas. Atirou-se para o topo da hierarquia. Num alfaiate da Baixa encomendou uma farda de general do Exército, numa loja do Rossio comprou as estrelas e demais insígnias, noutra de Alvalade arranjou o boné com os dourados da ordem. A farda caía-lhe a matar. Nunca mais a largou.
Nos últimos meses de 1974, ainda a poeira da Revolução de 25 de Abril não assentara, conheceu Joaquina Conceição da Costa, solteira – que ficou encantada com a garbosa figura de general. Ela andava pelos 50, ‘ele’ pelos 42. Juntaram os trapinhos num apartamento na Damaia, concelho da Amadora, nos arredores de Lisboa.
Uma vizinha, Piedade Ferreira, cometeu o erro de confessar que tinha uns dinheiros de parte. Os olhos do falso general Tito brilharam de gula. Não lhe custou convencer a crédula vizinha a não correr riscos na banca nacionalizada: o melhor seria aplicar as poupanças nos Estados Unidos, numa sólida instituição bancária que conhecia muito bem dos tempos em que fora embaixador. Piedade confiou-lhe cerca de 2500 contos, uma fortuna para a época. Tito investiu o dinheiro na compra da vivenda ‘Saudade’, em Alenquer, para onde foi viver com a fiel Joaquina da Costa.
Maria Teresinha, a mulher mascarada de general, fez-se passar por embaixador, director da CIA em Portugal, tesoureiro da Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa, advogado de causas exclusivamente militares e espião. Até iludiu o motorista que todos os dias o conduzia desde Alenquer e o deixava nas imediações do Quartel do Carmo, comando-geral da GNR, em Lisboa: durante dois anos não lhe pagou um tostão de ordenado.
As sucessivas burlas deram origem a queixas na Polícia Judiciária. Os investigadores suaram à procura de um tal general Tito Aníbal da Paixão Gomes. Só ao fim de um ano verificaram que uma mulher com os mesmos apelidos estava desaparecida da Madeira desde os anos 60. Foi detida em Novembro de 1992 – e a farda confiscada.
Para provar que o general Tito Aníbal era, afinal, uma mulher, a Polícia Judiciária levou a suspeita ao Instituto de Medicina Legal – onde os médicos esclareceram todas as dúvidas. Teresinha foi fotografada no Instituto de Medicina Legal como veio ao Mundo – e a foto passou a fazer parte do processo. Mas a imagem era chocante, tão grotesca que o juiz que presidiu ao colectivo de julgamento, Silveira Antunes, a arrancou dos autos e rasgou-a.
Maria Teresinha foi julgada em 1993 no Tribunal da Boa-Hora, em Lisboa, e condenada na pena suspensa de três anos de prisão. O duche matinal do ‘general’ foi um dos temas mais debatidos no julgamento. ‘Ele’ levantava-se religiosamente às seis da manhã, ainda a companheira Joaquina dormia. Tinha tempo para estar à-vontade sem correr o risco de ser surpreendido na intimidade. O creme de barbear e as lâminas davam um toque masculino ao cenário. Quando Joaquina se levantava, já o ‘general’ estava arranjado. Joaquina disse em Tribunal que durante todo o tempo julgou partilhar casa com um homem. O mistério baralhou os juízes – que só encontraram uma explicação: a vida era em comum, mas em quartos separados.
Maria Teresinha Gomes faleceu aos 74 anos.
fonte: Correio da Manhã (07.10.06)
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