Confesso que não sou grande fã de Vicente Jorge Silva e das suas crónicas. No entanto, há momentos que temos de dar o braço a torcer e, desta vez, o jornalista acertou na "mouche". Ora leiam com atenção...
"Um dos principais motivos que justificam a descrença e o desencanto dos cidadãos com a política é a incoerência e a duplicidade dos seus agentes, sobretudo quando se vive uma crise profunda de confiança colectiva. Cavaco Silva compreendeu-o e, por isso, assentou a estratégia da sua campanha num distanciamento formal dos aparelhos políticos. Manuel Alegre tem capitalizado a sua (forçada) "extraterritorialidade" partidária, explorando a dependência de Mário Soares do apoio, embora ambíguo e finalmente pouco convicto, do PS. Já a guerra de Louçã e Jerónimo é outra opõem-se ao establishment político dominante, mas enquanto candidatos dos respectivos partidos e empenhados, antes de mais, em fixar os seus eleitorados.
Nos últimos dias, porém, as imagens dos principais candidatos, em especial a de Cavaco Silva, foram expostas a uma espécie de prova da verdade por esse elemento excêntrico mas incontornável da vida portuguesa que é Alberto João Jardim. Recorde-se que o grande favorito na corrida a Belém pedira aos dirigentes do PSD e do CDS que não o acompanhassem nas acções de campanha e parecia apostado em evitar contactos políticos e institucionais que pudessem macular a virgindade "suprapartidária" e "nacional" da sua candidatura. Assim sendo, Cavaco dispensou, na sua visita aos Açores, qualquer encontro com as autoridades regionais. Só que Mário Soares estava à espreita e não perdeu tempo em promover um golpe de teatro na Madeira deitou pela borda fora as antigas críticas ao "défice democrático" e forneceu a Jardim a oportunidade de posar como irrepreensível grand seigneur e anfitrião cordialíssimo do seu velho inimigo político.
Depois desta edificante reconciliação, era grande a curiosidade em saber o que faria Cavaco quando chegasse a sua vez de visitar a Madeira. Manteria coerentemente a posição de distanciamento - como fizera nos Açores - ou acabaria por ser envolvido no abraço asfixiante do líder madeirense, que, ainda há poucos meses, propusera expeditamente a expulsão do "sr. Silva" do PSD? Afinal, a expectativa não tinha razão de ser desde o primeiro minuto, Jardim chamou a si o estatuto de grão-mestre de cerimónias da campanha de Cavaco na Madeira, anulando quaisquer veleidades "autonomistas" do candidato e levando-o a descartar os conflitos anteriores entre ambos para o providencial bode expiatório da comunicação social. Afinal, tudo se resumiria a contas definitivamente passadas ou a especulações malévolas e invenções dos jornais: a obra de Jardim era um exemplo nacional e o "défice democrático" não passaria de uma "expressão um pouco absurda".
Fora fácil a Cavaco afastar do caminho outras companhias incómodas, mas não foi capaz de resistir um instante ao rolo compressor do jardinismo. Abdicou da altivez majestática que tão ciosamente cultivara e deixou-se arrastar, qual criança ingénua e desprevenida, para o circo frenético que Jardim tinha montado à sua volta - quase sem lhe dar tempo para respirar ou aperceber-se da armadilha onde caíra. É que, na exuberância folclórica da encenação, Jardim desfrutava o prazer pérfido da vingança contra outro dos seus inimigos do peito reduzira-o a um tigre de papel nas suas mãos de amestrador consumado, fizera estalar o verniz da solenidade presidencial "suprapartidária" e "nacional" do candidato e, finalmente, demonstrara a quem quisesse ver que o rei prometido já ia nu.
Não há mito da suprema autoridade pátria que sobreviva na terra do "povo superior". Soares engoliu o sapo do "défice democrático" e até Alegre já subscreve, conformado, a legitimidade do jardinismo. Só os candidatos que não contam, os Jerónimos e os Louçãs, arriscam veleidades moralistas, aliás inócuas e improcedentes. Na Madeira, manda Jardim e só ele, é um domínio reservado e exterior aos poderes efectivos ou simbólicos do Presidente da República Portuguesa. Foi a isso que os três principais candidatos - de forma mais ou menos calculada ou constrangida - acabaram por render-se, com destaque para o vencedor anunciado da eleição. A imagem que Cavaco tem vindo a compor com infinitos cuidados cirúrgicos estilhaçou-se no espelho da Madeira. O primeiro vencedor das presidenciais não é nenhum dos actuais concorrentes. Chama-se Alberto João Jardim."
"Um dos principais motivos que justificam a descrença e o desencanto dos cidadãos com a política é a incoerência e a duplicidade dos seus agentes, sobretudo quando se vive uma crise profunda de confiança colectiva. Cavaco Silva compreendeu-o e, por isso, assentou a estratégia da sua campanha num distanciamento formal dos aparelhos políticos. Manuel Alegre tem capitalizado a sua (forçada) "extraterritorialidade" partidária, explorando a dependência de Mário Soares do apoio, embora ambíguo e finalmente pouco convicto, do PS. Já a guerra de Louçã e Jerónimo é outra opõem-se ao establishment político dominante, mas enquanto candidatos dos respectivos partidos e empenhados, antes de mais, em fixar os seus eleitorados.
Nos últimos dias, porém, as imagens dos principais candidatos, em especial a de Cavaco Silva, foram expostas a uma espécie de prova da verdade por esse elemento excêntrico mas incontornável da vida portuguesa que é Alberto João Jardim. Recorde-se que o grande favorito na corrida a Belém pedira aos dirigentes do PSD e do CDS que não o acompanhassem nas acções de campanha e parecia apostado em evitar contactos políticos e institucionais que pudessem macular a virgindade "suprapartidária" e "nacional" da sua candidatura. Assim sendo, Cavaco dispensou, na sua visita aos Açores, qualquer encontro com as autoridades regionais. Só que Mário Soares estava à espreita e não perdeu tempo em promover um golpe de teatro na Madeira deitou pela borda fora as antigas críticas ao "défice democrático" e forneceu a Jardim a oportunidade de posar como irrepreensível grand seigneur e anfitrião cordialíssimo do seu velho inimigo político.
Depois desta edificante reconciliação, era grande a curiosidade em saber o que faria Cavaco quando chegasse a sua vez de visitar a Madeira. Manteria coerentemente a posição de distanciamento - como fizera nos Açores - ou acabaria por ser envolvido no abraço asfixiante do líder madeirense, que, ainda há poucos meses, propusera expeditamente a expulsão do "sr. Silva" do PSD? Afinal, a expectativa não tinha razão de ser desde o primeiro minuto, Jardim chamou a si o estatuto de grão-mestre de cerimónias da campanha de Cavaco na Madeira, anulando quaisquer veleidades "autonomistas" do candidato e levando-o a descartar os conflitos anteriores entre ambos para o providencial bode expiatório da comunicação social. Afinal, tudo se resumiria a contas definitivamente passadas ou a especulações malévolas e invenções dos jornais: a obra de Jardim era um exemplo nacional e o "défice democrático" não passaria de uma "expressão um pouco absurda".
Fora fácil a Cavaco afastar do caminho outras companhias incómodas, mas não foi capaz de resistir um instante ao rolo compressor do jardinismo. Abdicou da altivez majestática que tão ciosamente cultivara e deixou-se arrastar, qual criança ingénua e desprevenida, para o circo frenético que Jardim tinha montado à sua volta - quase sem lhe dar tempo para respirar ou aperceber-se da armadilha onde caíra. É que, na exuberância folclórica da encenação, Jardim desfrutava o prazer pérfido da vingança contra outro dos seus inimigos do peito reduzira-o a um tigre de papel nas suas mãos de amestrador consumado, fizera estalar o verniz da solenidade presidencial "suprapartidária" e "nacional" do candidato e, finalmente, demonstrara a quem quisesse ver que o rei prometido já ia nu.
Não há mito da suprema autoridade pátria que sobreviva na terra do "povo superior". Soares engoliu o sapo do "défice democrático" e até Alegre já subscreve, conformado, a legitimidade do jardinismo. Só os candidatos que não contam, os Jerónimos e os Louçãs, arriscam veleidades moralistas, aliás inócuas e improcedentes. Na Madeira, manda Jardim e só ele, é um domínio reservado e exterior aos poderes efectivos ou simbólicos do Presidente da República Portuguesa. Foi a isso que os três principais candidatos - de forma mais ou menos calculada ou constrangida - acabaram por render-se, com destaque para o vencedor anunciado da eleição. A imagem que Cavaco tem vindo a compor com infinitos cuidados cirúrgicos estilhaçou-se no espelho da Madeira. O primeiro vencedor das presidenciais não é nenhum dos actuais concorrentes. Chama-se Alberto João Jardim."
Vicente Jorge Silva, "Diário de Notícias", 11-01-2006
Sem comentários:
Enviar um comentário