sexta-feira, julho 08, 2005

O espectáculo do medo

H.G. Wells e Orson Welles - o espectáculo do medo

A popularidade da novela de H. G. Wells não seria com certeza a mesma sem o fortíssimo contributo que para ela deu, em finais da década de 30, um jovem de 23 anos quase homónimo do escritor inglês. Orson Welles, chamava-se e a noite do dia 30 de Outubro de 1938 (noite de "halloween") foi quando milhões de americanos ficaram a conhecer esse nome.

A história é conhecidíssima. Orson Welles integrava o Mercury Theater, um grupo de teatro (onde se incluiam muitos dos actores que depois Welles levaria para o cinema) que tinha uma rubrica semanal na rádio CBS dedicada à encenação de peças teatrais ou dramatização de textos de outra índole. Para essa noite, a obra escolhida era a novela (velha, então, de 40 anos) de H. G. Wells sobre uma invasão extraterreste. A história passava-se originalmente em Londres e arredores, no final do século XIX, Orson Welles decidiu dramatizá-la como algo que se estava a passar "aqui e agora" - ou seja, algures em New Jersey, não muito longe de Nova Iorque, e naquela mesma noite.

Os ouvintes habituais da rádio (eram tempos, não esqueçamos, pré-televisão) já tinham alguma familiaridade com aquilo a que hoje se chamaria a "estética do directo", e a intenção de Welles, plenamente consciente, foi trabalhar dentro dessa estética, "ocupá-la" com teatro e com simulacro (ou, na sua própria terminologia, e como refere no seu filme sobre verdades e mentiras, "F for Fake", já nos anos 70, com "prestidigitação"). Mostrou aos seus actores a gravação da reportagem em directo do acidente do zeppelin "Hindenburg" (um dos primeiros grandes momentos do "directo" na rádio americana, em 1937) para lhes exemplificar o estilo de narração pretendido. E decompôs a história de Wells numa série de "flashes" informativos: ao longo de uma hora de emissão, o teatro transformava-se em "noticiário", num relato entrecortado da chegada e do avanço de hordas de marcianos que destruíam tudo o que encontravam pela frente. Os ouvintes, sobretudo os que falharam o início do programa (e perderam as referências à dramatização da história de Wells), entraram em pânico: duma audiência estimada em nove milhões de ouvintes, calcula-se que perto de dois milhões tenham reagido "activamente", fugindo, gritando, bloqueando as linhas telefónicas com chamadas para a polícia, etc. Até astrólogos da Universidade de Princeton (perto do local da suposta invasão) caíram na esparrela e levaram o assunto a sério.

O mundo descobriu o poder dos "mass media" como instrumento de manipulação simultânea de milhões de pessoas, e como fabuloso mecanismo de indução de pânico e alarmismo (lição que hoje é o bê-a-bá de qualquer canal de TV). Mas se Welles anteviu, em algumas décadas, o modelo de construção dos "directos" televisivos, as pessoas também aprenderam a desconfiar - três anos mais tarde, quando foi anunciado na rádio o ataque a Pearl Harbor e declaração de guerra ao Japão, toda a gente se lembrou de Welles. A Peter Bogdanovich (no livro-entrevista "This is Orson Welles"), o cineasta contou assim o dia 7 de Dezembro de 1941: "Estava numa emissão patriótica e foi interrompido a meio. Estava a ler passagens de Walt Whitman sobre quão bela era a América quando de repente há uma interrupção e é anunciado o ataque a Pearl Harbor - ora, aquilo parecia mesmo que era eu a tentar repetir a brincadeira". A incredulidade foi tal que Roosevelt, uns dias depois, enviou um telegrama a Welles comentando o caso, "something about "crying wolf" and that kind of thing". A linha entre "informação" e "espectáculo" fora definitivamente cruzada por Welles.

Luís Miguel Oliveira (Publico)

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